“Pedimos desculpas (...) Admitimos que a capa é racista!”

Noite de segunda-feira, em São Paulo. O calor infernal deixa o ar rarefeito e ajuda a agravar ainda mais a sensação térmica. No pequeno auditório improvisado no primeiro andar do prédio do Pólis – Instituto de Estudos, Formação e Assessoria em Políticas Sociais, nas cercanias da Praça da República, as cadeiras de padrão escolar vão sendo ocupadas uma a uma.

A temperatura do local aumenta a cada minuto, graças à ventilação precária e à constante elevação do “calor” do debate. A audiência é eclética, tanto no quesito faixa etária quanto em relação à cor da pele. No entanto, é visível a forte predominância de jovens afro-brasileiros entre os cerca de 50 presentes. E não poderia ser diferente. Afinal, o tema da noite era “A Esquerda e o Racismo”.

Mas este poderia ter sido um dos tantos debates que pipocam aqui e ali sobre assuntos da agenda política, econômica e social brasileira e global. Não fosse pelo detalhe de quem estava no “banco dos réus” eram e-xa-ta-men-te os promotores do evento: a equipe de jornalistas do Le Monde Diplomatique Brasil, acusados de racismo por parte do movimento negro de São Paulo.

O pomo da discórdia foi a ilustração da capa da 111ª edição na qual uma figura patética, bestializada, sem dentes e negra é usada para representar o brasileiro médio, o qual pode ser prejudicado com a Reforma Trabalhista e Previdenciária, na pauta do governo federal. Para os ativistas, a capa reforça os estereótipos negativos em relação aos afro-brasileiros, comuns na chamada mídia tradicional e “de direita”.

“Em primeiro lugar, eu quero dizer que o jornal Le Monde Diplomatique errou em relação à questão da capa. Para ser sincero, nós não nos demos conta, num primeiro momento, na mensagem que a capa estava passando. Depois, com as reiteradas menções de vocês, nós caímos na real. Então, a primeira coisa é um pedido de desculpas. Não era intenção nossa fazer isso e estamos admitindo que a capa é racista”, disse Silvio Caccia Bava, diretor e editor-chefe do jornal.

Ícone do pensamento da intelectualidade brasileira de esquerda (grupo classificado jocosamente como esquerda caviar), a publicação é uma das mais longevas e bem-sucedidas entre a chamada Nova Imprensa Alternativa. Sua matéria-prima é o debate em alto nível dos temas sociais e políticos, fazendo um contraponto ao pensamento da direita neoliberal, conforme deixa claro em cada um dos artigos assinados por notórios pesquisadores e intelectuais.

Graças a essa linha editorial angariou cerca de 50 mil leitores fiéis pelo Brasil afora.

Nos últimos 15 dias, porém, o jornal e sua equipe editorial passaram a ocupar o lugar de vilão nas redes sociais. Nem bem havia chegado às bancas e as reações começaram a pipocar. Curiosamente, foram as blogueiras e as internautas que puxaram o coro. Numa demonstração de que estava disposta a aprender com o erro, a direção do Le Monde Diplomatique chamou o pessoal para conversar. “Para não ficar apenas no plano das acusações queremos, a partir da capa do jornal, fazer uma discussão mais ampla sobre o racismo e a esquerda.”

MOMENTOS DE TENSÃO, ANGÚSTIA…

Durante quase três horas, Silvio e os dois editores que compõe o staff fixo do jornal ouviram críticas ácidas, duras e na intensidade do mal que a capa da edição havia causado aos presentes. Tanto por parte dos cinco integrantes da mesa, quanto da audiência. Acomodado numa das cadeiras da plateia, o veterano jornalista ouvia tudo com atenção.

Em seu semblante era possível identificar momentos de angústia, tristeza, cansaço, contrariedade e até mesmo vergonha com as pesadas críticas e acusações desferidas a cada intervenção por parte da mesa e da plateia. “Fizemos 110 capas antes dessa e nunca tivemos um problema sequer”, falou a 1 Papo Reto no final do encontro.

Questionado se havia ficado surpreso com o tom das falas, ele se mostrou resignado. Contou que, em meio ao processo de redução de danos, havia pensado até em recolher a edição do jornal. Mas desistiu por questões práticas (a empresa que realiza a distribuição faz o recolhimento apenas em datas previamente marcadas) e financeiras (o jornal vive da “mão para a boca”, com a venda de uma edição viabilizando a seguinte).

Ao se expor de uma forma tão aberta, algo raro na tradição brasileira, em geral, e na mídia, em particular, Silvio deu uma demonstração importante. Assumiu o erro e se dispôs a ouvir as críticas, por mais duras que elas pudessem ser. Mais. Disse que tentaria fazer daquele “mau momento” uma oportunidade de evolução, ao aprender com o erro.

Mas entre o desejo e a materialidade, e a teoria e a prática vai um oceano de distância. Isso ficou claro nas réplicas do jornalista às provocações e sugestões, como também nas propostas de providências/reparações feitas pelos debatedores. Afinal, no que se refere à exclusão do negro, a mídia, tanto à esquerda quanto à direita, adota um comportamento “padrão Brasil” de negar, pedir desculpas e tentar encerrar o caso.

“Primeiramente, é racismo!”, disparou a jovem jornalista free-lancer e militante de esquerda Gisele Brito. “Toda intelectualidade presente nas páginas do jornal não serviu para nada. O jornal custa caro e é usado para formar consciências, mas é integrado apenas por brancos que reproduzem estereótipos”, criticou.

A pouca participação ou inexistência de jornalistas afro-brasileiros nas redações, em geral, também foi destacada pelos demais debatedores como um ponto negativo, pois acaba reforçando um único modo de enxergar o mundo, a partir do eurocentrismo, também classificado como branquitude.

A historiadora e pesquisadora dos estereótipos da posição do negro na imprensa mundial Suzane Jardim começou sua fala se dizendo incomodada por estar naquele local. “Aceitei o convite com certa vergonha, pois não esperava me ver na condição de ter de explicar uma questão que é básica e começou a ser discutida em 1940, no Brasil”.

Uma das autoras do livro #Meu Amigo Secreto, que fala sobre a violência sexual contra a mulher, a relações públicas e blogueira Gabriela Moura também investiu na linha da crítica à falta de sensibilidade racial da equipe do jornal. “Mais do que sentir vergonha em estar aqui hoje, eu senti raiva ao aceitar o convite”, disparou. “Só se lembram dos negros quando descobrem que fizeram merda, e aí nos chamam para ajudar a consertar.”

Neste ponto é preciso explicar um pouco mais como o processo se desenrolou.

A controvertida capa do Le Monde Diplomatique Brasil já saiu da redação sob a aura da polêmica. De acordo com informações do próprio Silvio, parte do staff foi contrário à sua publicação, pois enxergava nos traços do veterano cartunista Jaguar (fundador do Pasquim, ícone da imprensa alternativa das décadas de 1960 e 1970) um racismo velado.

Contudo, Silvio bancou a aposta por não ter detectado no desenho essa intenção manifesta. Tanto que, na nota a qual convoca para o debate (veja a íntegra no final desta matéria), ele deixa claro essa linha de argumentação. Pior. Coloca a percepção do racismo como uma conclusão do movimento negro: “(…) Quanto à capa, nós a consideramos uma iniciativa infeliz e lamentamos ter sido considerada racista e queremos pedir desculpas aos nossos leitores. (…)”.

Ao entrar no chamado estado de negação, o diretor do jornal acabou “apagando fogo com querosene”. Por conta desta postura, considerada equivocada e desrespeitosa pela quase totalidade dos debatedores e da audiência, frei David, fundador da ONG Educafro, chegou ao encontro com planos ambiciosos.

Como reparação ao dano causado à comunidade afro-brasileira, ele sugeriu uma série de medidas. Desde a publicação de uma edição especial sobre a questão racial no Brasil até a contratação de jornalistas negros, passando pela criação de um programa de estágio para afro-brasileiros estudantes de jornalismo.

Ideias boas, sem dúvida, mas impossíveis de serem adotadas numa estrutura enxuta como a do Le Monde Diplomatique Brasil. “Essa empresa é registrada como uma ONG, não somos uma corporação que visa lucro nem temos receita para fazer frente a tamanhas despesas.” Como alternativa, o diretor de redação do jornal se comprometeu em abrir espaço para o tema nas colunas do jornal.

Mas o debate sobre o racismo no Brasil é um terreno pantanoso, capaz de engolfar até mesmo aqueles reconhecidamente bem intencionados e esclarecidos. Em sua fala final, Silvio explicou que o processo de seleção dos articulistas convidados a colaborar, de forma gratuita com a publicação, se devia ao notório saber em relação à pauta proposta a cada edição.

“Nós não temos um coletivo permanente de pessoas que nós convidamos. Olhamos o que vamos tratar, a partir do mapa de conflitos sociais e buscamos o que há de melhor. Não tínhamos o critério de que teríamos de incluir um articulista negro em cada debate, mas podemos passar a tê-lo”, disse. “O que não quer dizer que não foram convidados negros para escrever no jornal.”

Foi o bastante para gerar um buchicho em meio à audiência e em toda a mesa de debatedores. Afinal, ficou a impressão de que, se o jornal não convocava negros é porque estava procurando apenas “os melhores”.

O mal-estar foi reverberado pela jornalista Ana Claudia Mielke, integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, que atuou como mediadora. Ela interpelou Silvio, ao final do evento. “Os intelectuais negros são capazes de falar sobre temas diversos, em alto nível, e não apenas de racismo.”

É, parece que a ficha do Diplô, como Silvio se refere carinhosamente ao jornal, ainda não caiu totalmente!

Carta publicada na página do Facebook do Le Monde Diplomatique Brasil, em 4/10/2016

“Caras leitoras e leitores que se pronunciaram sobre a capa desta nossa ultima edição e a classificaram de racista,

Recebemos com apreensão os comentários de que havíamos nos tornado racistas. O jornal Le Monde Diplomatique Brasil sempre esteve solidário ao movimento negro, às mobilizações das jovens mulheres negras, engajado na campanha contra o extermínio da juventude negra, e em defesa dos direitos de cidadania.
Quanto à capa, nós a consideramos uma iniciativa infeliz e lamentamos ter sido considerada racista e queremos pedir desculpas aos nossos leitores. Acolhemos a crítica, reconhecemos o erro e entendemos que essas são reações vindas de quem vive na pele, no dia-a-dia, as discriminações odiosas e classistas contra os negros e as negras no Brasil.
Acreditamos que a melhor maneira de enfrentar esta questão é abrir as páginas do jornal para publicarmos os argumentos que nos criticam, ampliando o espaço deste importante debate público.
Queremos convidar a todos que se manifestaram, e a todos e todas que se interessarem, a participar de um debate sobre MÍDIA E RACISMO, dia 17 de outubro, segunda-feira, às 19:30 horas, em nosso auditório, à Rua Araújo 124 Le Monde Diplomatique Brasil

vídeo da  íntegra do debate Mídia e Racismo: Capa Le Monde Diplomatique Brasil, realizado em 17/10/2016.

O vídeo publicado no site Jornalistas Livres* mostra protesto contra o Le Monde Diplomatique Brasil, durante o  “6º Seminário Público – Direitos Trabalhistas: 100 anos de retrocesso?”

*Imagens: Leandro Caproni/Edição: Pedro Ivo Carvalho