O ano começou com uma vitória para a comunidade afro-brasileira, por conta da inclusão de uma das mais importantes figuras de sua história moderna, Abdias do Nascimento, no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria. Trata-se de uma obra feita de páginas de aço, onde ficam gravados os nomes de "protagonistas da liberdade e da democracia, que dedicaram sua vida ao país em algum momento da história”, como descreve a Agência Senado. Exposto dentro do Panteão da Pátria, parte do conjunto de edifícios da Praça dos Três Poderes em Brasília, o livro juntou Abdias à nomes como Zumbi dos Palmares, Antonieta de Barros e Clara Camarão.
Nos Estados Unidos, janeiro é importante há pelo menos 24 anos. Desde 2000, os 50 estados do país* comemoram, na terceira segunda-feira do mês, o Dia de Martin Luther King Jr., feriado nacional decretado em 1983 pelo governo federal. King nasceu em 15 de janeiro de 1929 e, se estivesse vivo, hoje ele teria 95 anos. Nos EUA, apenas duas datas até hoje foram definidas pelo governo federal como dias de serviço comunitário: o 11 de setembro, em alusão ao maior ataque terrorista na história do país, e o Dia de Martin Luther King Jr. O intuito desses feriados é incentivar que as pessoas usem o dia “de folga” para prestar serviços comunitários.
Nascido em 14 de março de 1914, Abdias era quinze anos mais velho do que King. Ambos possuem trajetórias bastante pioneiras. Eles participaram de importantes ações no plano político e ideológico, que ultrapassaram a fronteira de seus países, visando à promoção dos direitos e da vida da comunidade negra.
Abdias e Ruth de Souza no TENA luta do brasileiro fez-se muito presente no campo das artes. Poeta, escritor, teatrólogo e artista plástico, Abdias fundou, em 1944, o Teatro Experimental do Negro (TEN), e em 1968, o Museu da Arte Negra, de acordo com o portal da literatura Afro-Brasileira da UFMG. Nos anos 1970, esteve envolvido em diversos eventos internacionais sobre a cultura negra. Em 1980, participou da criação do Memorial Zumbi, na Serra da Barriga (AL) e, em 1981, foi responsável pela criação do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro), na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), por meio do qual lançou a revista Afrodiáspora e organizou o 3º Congresso de Cultura Negra das Américas.
Na esfera política, participou da Frente Negra Brasileira (FNB), uma das primeiras organizações do século 20 a lutar pela igualdade de direitos, no país, e cuja estratégia de atuação incluía a promoção de atividades, tais como: seminários, cursos, palestras e festivais, com foco na conscientização dos integrantes da comunidade afro-brasileira.
Em 1945 e 1946, Abdias organizou a Convenção Nacional do Negro, por meio da qual chamou atenção para a necessidade de criminalização do racismo, e se envolveu ativamente da concepção do Primeiro Congresso do Negro Brasileiro, em 1950. Em 1978, participou da criação do Movimento Negro Unificado (MNU). Ajudou a fundar e foi vice-presidente do PDT, partido pelo qual ocupou o cargo de secretário de Direitos Humanos e Cidadania do Estado do Rio de Janeiro, além de ter sido eleito deputado federal e senador. Sua trajetória fez com que fosse indicado ao Prêmio Nobel da Paz. Como deputado, foi um dos pioneiros na defesa de iniciativas visando à implantação de políticas afirmativas.
Durante a ditadura militar, Abdias se exilou na Nigéria e nos EUA, onde foi professor universitário e entrou em contato com o movimento negro internacional, incluindo os Panteras Negras. Apesar de ter vivido cerca de 10 anos no exterior, sua estada nos EUA não coincidiu com o período de vida e luta de Martin Luther King.
King exibe o Prêmio Nobel da PazKing tinha uma abordagem um pouco mais performática em relação ao ativismo, se posicionando como a principal face em passeatas, além de ser conhecido por sua habilidade como orador, atributos muito ligados à sua formação como teólogo e atuação como pastor. O maior destaque popular em sua biografia é um discurso proferido em Washington, D.C. em 1963, conhecido pela frase “I have a dream” ("Eu tenho um sonho”). O cerne de sua luta se baseava na não violência, filosofia celebrizada por Mahatma Gandhi, líder da independência da Índia. A partir da ação de Rosa Parks, moradora de Montgomery (Alabama) presa por se recusar a ceder o lugar em um ônibus a um homem branco, King liderou ações de boicote ao serviço de transporte público na cidade, em 1955. Essa mobilização acabou servindo de base para que a Suprema Corte Federal votasse a favor do fim da segregação racial dentro de ônibus públicos.
King foi membro do comitê executivo da National Association for the Advancement of Colored People (Associação Nacional para o Avanço das Pessoas Não-Brancas) e presidente da Southern Christian Leadership Conference (Conferência de Lideranças Cristãs do Sul), criada para desenvolver novos líderes para o movimento de direitos civis. Também viajou pelos EUA, percorrendo milhares de quilômetros para discursar e apoiar as causas sociais locais e nacionais. Uma das mais importantes foi a campanha de registro de eleitores negros no Alabama.
Essa proeminência acabou rendendo reconhecimentos expressivos, como cinco títulos de doutor honoris causa e um Prêmio Nobel da Paz. Assim como o brasileiro Abdias, suas ações o colocaram na mira da justiça e da polícia que o prendeu em 20 ocasiões com as mais diversas alegações. King foi assassinado aos 39 anos na cidade de Memphis, no estado do Tennessee, onde ia participar de uma greve a favor dos trabalhadores do setor de limpeza pública.
De formas diferentes, estes dois líderes causaram um grande impacto na vida da população negra de seus países. Abdias dizia lutar por uma “segunda e verdadeira abolição”, assim como King. Janeiro é um mês de celebração em ambos países, que nos lembra que a verdadeira mudança só vem se colocarmos a mão na massa.
*Nos EUA, cada estado tem suas próprias leis, então alguns feriados, mesmo que federais, são celebrados em alguns lugares e não em outros. A diferença: se você for funcionário do governo federal ou trabalhar numa empresa que segue o calendário federal de feriados, você pode ter o dia de folga em feriados federais, mesmo que o feriado não seja comemorado no estado onde você vive. O contrário também vale: pode ser que seja feriado no estado que você mora, mas se a sua empresa reconhece apenas o calendário federal, você não ganha o dia de folga.
