Bem mais do que um filme

Previsto para estrear no Brasil, na quinta-feira 15, o filme Pantera Negra, dirigido por Ryan Coogler e produzido pela Marvel Studios, vem causando um grande frisson entre os amantes dos personagens do universo comics. Fenômeno semelhante ocorre também entre os integrantes da comunidade afro-brasileira, em geral. Como, aliás, já era de ser esperar. Afinal, o herói criado pela Marvel na década de 1960, em plena efervescência da luta pelos direitos sociais e políticos dos afro-americanos, é um dos poucos que ainda não havia chegado à telona. A superprodução orçada em US$ 200 milhões reúne as condições para se tornar um blockbuster: muita ação, efeitos especiais e um público sedento por filmes “fora da caixinha”.

É que a presença de atores e atrizes negros continua sendo rara no mundo do cinema, apesar do elevado poder de consumo da comunidade afro-americana e do fato de os afrodescendentes representarem quase 53% da população brasileira. Uma espécie de preview (ou amostra grátis) do personagem pode ser vista em Capitão América: Guerra Civil, de 2016, quando o nobre guerreiro T’Challa, interpretado por Chadwick Boseman, surge para vingar a morte do pai, o rei de Wakanda, assassinado em um atentado na ONU.

Para transformar o filme num acontecimento com viés de valorização da autoestima para este contingente, celebridades têm contratado sessões fechadas para jovens e crianças de baixa renda, nas comunidades majoritariamente afro, nos EUA, como o bairro do Harlem, na parte norte de Manhattan.

No Brasil, o empreendedor Durval Arantes, radicado em São Paulo, decidiu organizar uma sessão fechada para os integrantes do grupo Intelectualidade Afro-Brasileira, uma das páginas mais importantes do gênero, no Facebook, com 21.259 membros. Nesta entrevista a 1 Papo Reto, Durval conta como nasceu o projeto, concebido em parceria com sua companheira Ana Paula Evangelista, de “comprar” uma sessão especial do filme, na rede Cinemark, contratada para o sábado 17.

O simbolismo estará tanto nas telas quanto na plateia. Afinal, é sabido que um percentual mínimo de brasileiros vai aos cinemas com regularidade. E não é necessário estatística alguma para saber que boa parte deles não pertence à comunidade afro-brasileira. Mais raros, ainda, é vê-los em salas situadas em espaços da classe média alta de São Paulo, como o shopping Eldorado, no bairro de Pinheiros, na Zona Oeste da cidade.

Como surgiu a ideia de organizar uma sessão especial do filme Pantera Negra?

Foi a partir de um comentário da Ana Paula (Ana Paula Evangelista, esposa de Durval) que, alguns meses antes havia ido a uma sessão fechada de cinema, destinada apenas ao público feminino. No começo tudo ficou no campo das ideias. Aos poucos fomos amadurecendo o projeto e fazendo os contatos necessários.

E em que mês você começou a estruturar o projeto?

O pontapé se deu em outubro do ano passado, quando começaram a circular notícias sobre a estreia do filme, nos Estados Unidos.

E como foi a receptividade da direção do Cinemark. Vocês compraram a lotação e estão revendendo os ingressos ou é um contrato de ricos?

Esse tipo de negociação precisa se dar em alto nível. Você precisa ter credibilidade e falar a linguagem de negócios. Contudo, fizemos questão de adicionar um caráter representativo no enfoque, uma vez que as tratativas foram em nome do Grupo Intelectualidade Afro-brasileira.  Cumprimos com as prerrogativas necessárias para o fechamento do acordo e partimos para a organização logística do evento.

Você conseguiu patrocínio para esta empreitada?

O patrocínio que consegui para este acontecimento foi a visão de longo alcance da Ana Paula somada à minha veia empreendedora. Depois que o evento, em si, começou a ganhar corpo, visibilidade e algum impacto nos nichos do nosso recorte (a comunidade negra de São Paulo), começaram a surgir propostas de parcerias pontuais, as quais estão sendo estudadas, caso a caso.

O que representa para a comunidade negra ver na telinha uma África high-tech e futurista?

Esse filme, cuja história acontece no século 21, está para o cinema assim como a série Raízes, baseada no livro homônimo de Alex Haley, esteve para a TV, em meados dos anos 1970. Na verdade, um traz uma simetria direta e provocante com o outro, na medida em que a série propôs fazer uma releitura nua e crua da diáspora africana nas Américas, ao passo que o segundo estimula e instiga alternativas altruístas e representativas para o nosso futuro.  A expectativa geral da nossa gente é enorme com relação a esta produção.

Aqui no Brasil já tivemos outras obras icônicas como Zumbi, de Cacá Diegues, na década de 1980, e Besouro, de João Daniel Tikhomiroff, em 2009. Além disso, Joel Zito Araújo escreveu e dirigiu Filhas do Vento, aclamado em Gramado, mas que sequer foi exibido em grande circuito no Brasil. Você acredita que Pantera Negra pode favorecer as produções baseadas em histórias da comunidade, aqui no Brasil?

Entendo que pra se vender no assim chamado Grande Circuito, um filme precisa ter apelo comercial.  Cidade de Deus e Tropa de Elite mostraram um caminho.  E ainda assim foram produções caras para os padrões brasileiros.  Tudo passa pelo poder do capital, e os nossos roteiristas afrodescendentes, produtores, diretores, atores e atrizes ainda vivem, salvo engano, em uma realidade distante do patamar dos grandes investimentos do universo cinematográfico. Mas que não se iludam os desavisados.  A nossa comunidade tem homens e mulheres de enorme capacidade criativa e técnica.  Se as oportunidades surgirem, tenho certeza de que o nosso pessoal produzirá coisas de primeira qualidade em um futuro não muito distante.

Hoje, além de escritor e ativista das questões negras você segue na carreira de empreendedor. O que lhe motiva a continuar nessa luta de ajudar a viabilizar o surgimento de uma economia afro no Brasil?

A motivação maior é a de que nós afrodescendentes do Brasil merecemos desfrutar de uma cidadania de primeira classe.  Lutamos, homens e mulheres pretas, contra vários paradigmas sociais todos os dias.  Ainda estamos defasados nas estatísticas educacionais, científicas, trabalhistas, acadêmicas, empresariais, financeiras e outras métricas mais.  Chegamos aqui por volta de 1526, em condições desumanas, e fomos inseridos em uma estrutura social desigual, perversa e excludente. O ato em si de colocarmos a nossa comunidade, ainda que poucos e poucas, dentro de um shopping majoritariamente frequentado pela elite paulistana é quase tão emblemático quanto a oferta de um filme estrelado predominantemente por descendentes dos seres humanos africanos sobreviventes da Grande Travessia.  Sem exagero algum, uma pequena parcela do Reino de Wakanda estará assistindo a si mesma, na telona, no dia 17 de fevereiro, no shopping Eldorado.

SAIBA MAIS

Sobre o filme Pantera Negra

Sobre a campanha pelos Direitos Civis nos Estados Unidos

Sobre a trajetória empreendedora de Durval Arantes

Sobre o consumo de cultura no Brasil