"Menina mulher da pele preta"

O título acima é o nome de batismo de um instigante projeto audiovisual que tem tudo para provocar polêmica. E das boas. A começar pelo número de mulheres bonitas e talentosas convidadas para o longa assinado pelo diretor, roteirista, professor universitário e membro do Conselho Consultivo da Faculdade Zumbi dos Palmares, Renato Candido de Lima. A lista inclui divas na beleza e no talento como Juliana Alves, Érika Januza, Cris Vianna, Zezé Motta, Neusa Borges, Tekka Flor Salvino, entre outras revelações da Sétima Arte.

O projeto ainda está em fase de captação, mas o jovem cineasta paulistano, de 32 anos, formado pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), acredita que reúne todas as condições para colocá-lo de pé. Afinal, além de um currículo fornido, ele traz na bagagem um prêmio internacional, o Emmy Awards de 2014 como roteirista da série de TV Pedro e Bianca, exibida na TV Cultura de São Paulo.

Lima, porém, tem plena consciência de que captar recursos para projetos deste tipo nem sempre é fácil. Aliás, desde sua estreia no média-metragem Jennifer, de 2009, ele sente na pele as agruras e obstáculos para quem deseja fazer cinema autoral no Brasil.

Contudo, nada que o faça baixar a cabeça ou pensar em desistir. Muito pelo contrário. Lima não é apenas tenaz como também um batalhador incansável.

O projeto descritivo de Menina Mulher da Pele Preta deixa evidente uma trajetória pontuada por vitórias, mas também por muitas dificuldades. Até porque a escolha dos personagens e o seu jeito peculiar de fazer cinema, que privilegia o universo da mulher negra, são elementos que nunca receberam a atenção devida de nossos realizadores e produtores. Descontando-se, claro, o premiadíssimo Filhas do Vento, de Joel Zito Araújo.

Lima diz que em Menina Mulher da Pele Preta pretende intensificar ainda mais esta sua vertente, lançando um olhar mais aguçado sobre as alegrias, os dramas, os encontros e desencontros vividos por este contingente da população quase sempre invisível na dramaturgia brasileira. “O filme propõe um olhar universal, poético e não estereotipado sobre as diversas faces em ser uma mulher negra em nosso país”, resume.

Nesta entrevista exclusiva a 1 Papo Reto, Lima fala sobre o papel dos afro-brasileiros no cinema, em particular, e no audiovisual, em geral, e também sobre a safra de jovens cineastas como Jefferson De e produtores como o ator Lázaro Ramos que dá seus primeiros passos na produção e direção. Apesar de destacar o espaço conquistado pelos afro-brasileiros na sociedade, especialmente a partir de 2002, com o fortalecimento dos programas de inclusão social e racial, Lima não deixa de apontar os desafios e as barreiras impostas a este contingente da população, especialmente  neste setor.

“Tem muita gente negra no audiovisual, mas que permanece na invisibilidade dentro do nosso contexto de pleitear editais e conquistar a captação de recursos”, diz. Para o cineasta, uma das formas de virar este jogo é fazer com que o dinheiro circule nas comunidades. Ou seja, que os empreendedores afro-brasileiros ou gestores de grandes empresas apostem nas produções tocadas por jovens como ele. “O meu filme poder ser uma oportunidade de trabalho para muitas pessoas envolvidas no projeto, sejam elas negras ou não.”

Ao ser questionado sobre a ausência do debate sobre o racismo à brasileira, nas telas de cinema e da TV, Lima diz que isso se deve à tradição elitizada da produção audiovisual. “A nossa elite só discute aquilo que é mais cômodo para ela: a nossa relação racial, que só reitera lugares para o branco e para o negro.”

A seguir, os principais trechos da entrevista concedida a 1 Papo Reto:

Você é um dos mais bem-sucedidos representantes da nova geração de cineastas brasileiros. Quais foram os principais desafios em sua trajetória?

Não me considero um dos mais bem-sucedidos da minha geração. Ainda preciso mostrar aquilo que posso e sou capaz de realizar no audiovisual. E isso se dá formulando projetos e propostas de filmes, documentários e séries televisivas, além de conseguir dinheiro para fazer esses projetos bem fundamentados. Em todas elas, entendo que, diante de toda nossa história negada, é essencial que tenhamos o direito e a dignidade de contarmos a nossa história negra do Brasil. Tento realizar isso no audiovisual.

Minha trajetória profissional está ligada diretamente a minha vida acadêmica na USP. Estudei Audiovisual na ECA (Escola de Comunicações e Artes). Lá fiz meu bacharelado, de 2002 a 2007, e também meu mestrado, entre 2009 e 2011. Não foi fácil entrar no curso e completá-lo. Mas nunca pensei em abandonar a faculdade. Sempre quis dirigir e roteirizar as histórias. E assim eu me apropriei das ferramentas narrativas existentes para me ajudar a contar as minhas possíveis histórias. Na USP, a FFLCH (Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais) foi também um lugar acadêmico possível onde encontrei outras pessoas negras contemporâneas, o que se tornou foi um aprendizado muito rico e importante para um jovem negro como eu. É como se as várias angústias da solidão negra acadêmica pudessem ser organizadas e partilhadas na vivência que tive na FFLCH, inclusive assistindo às aulas do professor Kabengele Munanga (conceituado antropólogo nascido no Congo, se notabilizou como um crítico voraz do racismo à brasileira).

O principal desafio não só da minha trajetória, mas de outras e outros cineastas negros é conquistar uma regularidade e uma perenidade de produções audiovisuais nas quais nós negros sejamos protagonistas da fala e da construção dramatúrgica/imagética. Para isso, necessitaremos nos consolidar com histórias necessárias de serem contadas, além de encontrar um meio de fazer o dinheiro audiovisual circular também entre nós.

Você atuou como roteirista na premiada série Pedro e Bianca, vencedora do Emmy Awards. O que lhe dá mais prazer, escrever ou dirigir?

Fui convidado em junho de 2012 para o projeto Pedro e Bianca. Acredito que foi a minha orientadora que enviou meu currículo ao irmão dela, Cao Hamburger (um dos criadores da série). Como eu tinha vencido um edital do Ministério da Cultura para escrever um longa-metragem, eu estava muito atarefado para cumprir de nove a 10 roteiros de Pedro e Bianca. Foi neste contexto que eu consegui reunir no projeto a cineasta e amiga Renata Martins, que se incorporou à equipe de roteiristas o que nos possibilitou um grande aprendizado sobre estrutura de roteiros. Criamos uma rotina de escrita e de diálogo com a coordenação dramatúrgica. Além disso, nós dois também contribuímos em diversas outras histórias que se tornaram episódios ou trechos de episódios de outros roteiristas da série. O processo de criação era precedido de muita conversa e de reuniões.

Quanto a dirigir ou roteirizar… Essa divisão parte de um mercado que separa as funções. Nisto, o que gosto é dirigir histórias que precisam ser contadas. Nem que eu também seja essa pessoa que conte e roteirize a história.

Ao contrário dos Estados Unidos, a invisibilidade dos negros continua elevada nas produções audiovisuais brasileiras. Muitos alegam que faltam diretores, outros que faltam roteiristas, outros que não há verbas. E você, o que acha?

Desde o governo Lula, temos uma população universitária cada vez maior. No meu caso, conquistei minha vaga na USP em 2002 ainda sob governo do PSDB, mas ao colocar isso não é defendendo um discurso meritocrático, que para mim soa muito falso. Depois que entrei na faculdade, percebi o quanto a prova específica não leva em consideração a nossa experiência estética/dramatúrgica em audiovisual. Parte-se do pressuposto que o postulante saiba os valores estéticos eurocêntricos, basicamente. Noto que precisamos dar um outro passo. Não basta ter a população negra formada nas universidades. Tenho notado que mesmo a galera negra formada nas universidades ocupam também as vagas de trabalho que pagam pior.

O fato é que, dentro desse contexto, mais pessoas negras estão se formando nas universidades. Mais pessoas negras estão se formando em audiovisual e isso cria uma pressão por novos projetos que contemplem estes protagonistas. Assim, existem roteiristas, existem diretores. Tem muitos negros no audiovisual, mas que permanecem na invisibilidade dentro do nosso contexto de pleitear editais e conquistar captação de recursos.

Falta o dinheiro circular em nossas mãos também. Não digo como caridade. Mas no sentido de circulação mesmo. O meu filme poder ser oportunidade de trabalho para muitas pessoas envolvidas no projeto, sejam elas negras ou não. Então, num dado momento, comissões de júri ou mesmo empresas que se utilizam da renúncia fiscal para apoiar leis de incentivo ao audiovisual, entenderão que não estamos buscando caridade, mas sim recursos legítimos para que nossas histórias possam fazer a economia audiovisual girar e agregar valores do que pode se tornar o próximo movimento protagonista do audiovisual brasileiro. Daí, eu repito, necessitamos contar as nossas histórias.

Falando em verbas, você está captando recursos para o projeto Menina Mulher da Pele Preta que, aliás, foi desenvolvido, salvo engano, há uns 5 anos. Você acredita que agora o projeto tem mais chances de sair do papel pelo fato de você ter sido premiado?

A série Pedro e Bianca foi premiada em março de 2014. Logo, todas as pessoas envolvidas, como a Renata, também foram premiadas com o sucesso de uma série tão importante na carreira de muitas pessoas. Um exemplo é que os protagonistas, Giovanni Gallo e Heslaine Vieira, já fizeram minisséries e novelas depois desta experiência. Para mim, o prêmio é um legado não só para o projeto de longa Menina Mulher da Pele Preta, mas para a vida como um todo.

A gente sabe do nosso valor e do nosso trabalho. Isso não é presunção, evidentemente, mas é um reconhecimento da maturidade e da qualidade do que temos feito. No meu caso, venho amadurecendo o projeto desde 2009, quando comecei a burilar o longa como cinco histórias de cinco mulheres negras. Menina Mulher da Pele Preta passou pela peneira do mestrado, da ANCINE, do PROAC-ICMS… Agora vêm as peneiras mais difíceis como os editais do Fundo Setorial do Audiovisual do Cinema Paulista. Paralelamente a isto, temos a possibilidade de captação de recursos via renúncia fiscal. São várias frentes. E para todas elas, precisamos dialogar com produtoras maiores no que tange à coprodução ou mesmo neste novo cenário de distribuição de filmes, com um papel cada vez mais ativo das distribuidoras nacionais. E neste cenário de muitas dificuldades e batalhas que enxergo que meu longa-metragem, cada vez mais, está próximo dos espectadores.

O produtor, ator e diretor Tyler Perry se tornou o afro-americano mais influente do cinema dos EUA. Será que conseguiremos ter um ou mais Tyler também por aqui?
Acredito que Lázaro Ramos, Taís Araújo, Érico Brás, Fabrício Boliveira podem ser considerados como tal, na atualidade. Só que é necessário uma articulação maior com empresas protagonizadas pela população negra ou que tenham negras/negros em cargos de comando e decisão.

O tema preconceito racial é recorrente nas conversas em redes sociais, mas aparece muito pouco no audiovisual. Especialmente na TV. Quando aparece, o debate normalmente é muito superficial. Você acredita que os brasileiros têm medo de discutir este tema a fundo?

O audiovisual brasileiro vem de uma experiência e tradição elitizadas. A nossa elite não discute aquilo que é mais cômodo para ela: a nossa relação racial que só reitera lugares para o branco e para o negro. Quando existe o racismo nas novelas, ele é exercido pela fala apenas. Nunca existiu uma obra audiovisual que aborde como opera a estrutura racista da nossa sociedade.

Eu lembro que quando eu estava na ECA-USP, já no quarto ano, tive que defender um primeiro projeto de conclusão de curso. Na pequena banca de professores, a questão recorrente que perguntavam era: “Existe conflito de drama na sua história?”. Por mais que exista conflito na nossa história do Brasil ela é reconhecida pela nossa elite e por aqueles que não são, mas que se identificam com ela? Para muitos, a morte de um garoto de 10 anos no Complexo do Alemão (conjunto de favelas na Zona Norte do Rio de Janeiro) pode ser vista não como conflito, mas como parte da solução no extermínio de bandidos. Isso deixa claro a necessidade de nós contarmos a nossa própria história.

Como você vê o título cineasta negro? Aliás, este tipo de rótulo ainda cabe no Brasil?
É importante a identidade cineasta negro. Outras histórias precisam ser contadas. Agora, no Brasil, onde tudo permanece no lugar do negro e lugar do branco, o termo cineasta negro pode conferir o valor de cota única dentro do audiovisual. Não sei se você já percebeu, mas diversos comerciais de TV, atualmente, contam com um ator ou atriz negros. Mas eles sempre estão sós. É como se apenas existisse aquele único lugar. Agora, isso se repete no audiovisual. Atualmente temos o Jeferson De, mas é muito louco como o certo destaque sobre ele atua como invisibilidade para diversos outros artistas por exemplo. E eu digo certo destaque mesmo. Por exemplo, Jeferson De dirigiu uma boa parte de episódios de Pedro e Bianca, mas isso não foi muito divulgado. Não vi o movimento negro fazer nenhuma análise para destacar uma produção que traz Heslaine Vieira como atriz principal, Thogun como pai, Jeferson De dirigindo, Renata Martins e eu roteirizando… Não digo isso como mágoa ou provocação, mas da forma como nós mesmos também nos invisibilizamos.

Quem manja um pouco de cinema brasileiro, geralmente vai lembrar apenas de Jeferson De como cineasta negro. Não vão lembrar de Zózimo Bubul, Ari Candido (não sou parente dele, apesar do mesmo sobrenome), Lilian Santiago e por aí vai… Isso é muito simbólico em nossa sociedade e remonta à nossa tradição colonial que dá a ideia de quantos pretos podem ficar na Casa Grande. Quantos a nossa elite da branquitude tolera.

Por mais que a disputa pelos recursos estatais audiovisuais tenha se acirrado e que provavelmente acabe elegendo um único negro a atravessar toda a difícil floresta do financiamento audiovisual no Brasil, o contexto cada vez mais aponta para uma pluralidade de artistas negras e negros a realizarem seus filmes. Até porque isso é mercado. Angola deseja ver produção como a nossa. Moçambique também. Provavelmente acredito que até os afro-americanos tenham interesse em nossas histórias. Então, o fato de um Fundo Setorial investir numa produção negra não é caridade, é possibilitar que novas e novos protagonistas possam gerar mais riquezas simbólicas e físicas ao nosso audiovisual.