O Outubro Rosa, efeméride que alerta sobre a importância da prevenção e do tratamento do câncer de mama, foi criado em 1985, lá nos Estados Unidos. Reza a lenda que a campanha se deu a partir de uma parceria entre a American Cancer Society (ACS) e uma empresa farmacêutica para promover mamografias e educar sobre a doença. Tentei checar essa história, mas não encontrei nada oficial on-line, e ao contatar a Sociedade, uma porta-voz me disse que não confirma a história.
O que se sabe, porém, é que uma das pioneiras dessa campanha foi Nancy G. Brinker, que em 1982 co-criou a Fundação Susan G. Komen, nomeada em homenagem a sua irmã, que morreu de câncer aos 36 anos em 1980*. Em 1985, sua fundação foi descrita por um especialista para o jornal The New York Times como provavelmente a primeira do país especializada no combate ao câncer de mama, e já oferecia mamografias e ultrassons com resultados em aproximadamente uma hora e meia.
Nancy foi condecorada por ObamaBrinker foi diagnosticada com câncer de mama em 1983, mas sobreviveu após duas mastectomias (cirurgia de retirada de uma parte ou toda a mama) e a quimioterapia. Desde então, sua fundação já arrecadou mais de US$ 3 bilhões de dólares para pesquisa, educação e serviços relacionados à causa, de acordo com seu site pessoal.
A origem do lacinho cor de rosa é que tem uma história super interessante, um pouco mais comercial. Ele foi lançado em 1992, durante uma campanha da revista americana Self em parceria com a grife Estée Lauder**. Naquele ano, a marca de cosméticos distribuiu 1.5 milhões de lacinhos em seus pontos de venda, de acordo com a revista. Só que a ideia do laço não foi inventada pelas idealizadoras da campanha.
O adereço já era usado como mote de campanhas desde a guerra do Vietnã, quando americanos usaram laços amarelos para receber prisioneiros de guerra, libertados pelos adversários, em 1973. Depois, os laços, também amarelos, foram utilizados durante a crise da invasão da embaixada americana no Irã e a guerra do Golfo, de acordo com o jornal americano The New York Times. No ano em que a campanha do laço rosa foi lançada, laços vermelhos estavam em alta nas iniciativas de conscientização sobre a AIDS, que contou com a adesão de personalidades.
O que hoje é o laço cor de rosa, na verdade supostamente começou como um laço cor de pêssego, uma inciativa caseira criada por americana para conscientizar a população sobre o câncer após ver três mulheres de sua família lutarem contra a doença, como conta o documentário Pink Ribbons, Inc (Laços Rosa, Inc). Ao idealizar a campanha de 1992, a Self e a Estée Lauder supostamente teriam contatado a criadora dos laços pêssegos para uma parceria, a qual ela teria recusado. O rosa já era usado como símbolo pela Fundação Susan G. Komen e acabou, então, se tornando a referência global da campanha.
Esse movimento de conscientização foi importante na prevenção contra o câncer de mama nos Estados Unidos, onde a doença é a segunda maior causa de morte por câncer entre mulheres, ficando atrás apenas do câncer de pulmão, de acordo com a ACS. Lá, a taxa de mortalidade do câncer de mama caiu em pelo menos 43%, entre 1989 e 2020, evitando cerca de 460 mil mortes, de acordo com um relatório da entidade. A queda é atribuída por especialistas à melhora nos métodos de tratamento e ao aumento da detecção precoce da doença.
Aqui no Brasil, a história é um pouco diferente. O movimento também se popularizou entre 1980 e 1990. Um de seus marcos foi o seminário realizado pelo Instituto Nacional de Câncer (Inca), em 1985, no Rio de Janeiro, para discutir como reduzir a mortalidade e a incidência do câncer de mama e de colo de útero. A luta ganhou força entre 1998 e 2000 com o programa Viva Mulher, do governo federal, que buscou estabelecer um iniciativa nacional de controle da doença e comprou de aparelhos de exames***.
Apesar disso, o que se viu foram tendências de aumento e estabilidade das taxas de mortalidade desse câncer no Brasil, entre 1991 e 2019, de acordo com um artigo de 2019 publicado na Revista da Associação Brasileira de Saúde Coletiva. Especialistas do artigo atribuem esse quadro a problemas, como: o subfinanciamento dos serviços de saúde pública, o déficit de recursos, o sucateamento de equipamentos diagnósticos e as falhas de referenciamento na rede de atenção à saúde. Hoje, o câncer de mama é a primeira causa de morte por câncer em mulheres no Brasil, de acordo com um relatório de 2023 do Inca.
Mesmo assim, as campanhas nos dois países têm um impacto positivo no combate e na prevenção da doença. Entre 2017 e 2021, o Outubro Rosa, no Brasil, refletiu positivamente no aumento médio de mamografias no último trimestre do ano, de acordo com um estudo de 2022 feito por especialistas de saúde brasileiros. Nos Estados Unidos, a campanha resultou no aumento de buscas no Google acerca dos termos relacionados à doença, seu combate e prevenção, entre 2012 e 2021, de acordo com um estudo de 2022 publicado no acervo da National Library of Medicine (Biblioteca Nacional Americana de Medicina).
Boas intenções que disfarçam busca por lucros rápidos
Mas é preciso ter cuidado ao consumir produtos de empresas que se dizem apoiadoras da causa. Como se diz no jornalismo americano, “if your mother tells you she loves you, check it out” (“se a sua mãe disser que te ama, confira a veracidade dessa informação”). Ativistas em prol do combate ao câncer de mama alertam todos anos sobre como marcas se aproveitam desta efeméride para promover a própria imagem ou aumentar os lucros em cima de produtos rosa, que muitas vezes destinam uma parte ínfima para campanhas de luta contra a doença.
Tem ainda grupos que dizem que algumas empresas que atuam com produtos com componentes passíveis de causar câncer, se engajam nas campanhas do Outubro Rosa. Por isso, é bom sempre checar qual percentual da compra de determinado item reverte, de fato, para iniciativas médicas ou tratamento de pacientes. Uma outra alternativa é doar diretamente para as ONGs ou organizações que fazem o trabalho de combate e de conscientização sobre a prevenção da doença.
Impactos distintos, dependendo da raça e da escolaridade
A exemplo das demais pautas da saúde, o câncer de mama afeta pessoas de diferentes raças, regiões, classe social e gênero de maneira diferente. No Brasil, a taxa de mortalidade da doença é mais alta nas regiões Sul e Sudeste, seguidas das regiões Centro-Oeste, Nordeste e Norte, de acordo com o relatório do Inca, divulgado em 2023. A realização dos exames entre mulheres que compõem o público alvo (entre 50 e 69 anos) também varia dependendo da região e escolaridade. A taxa chega a 49% entre aquelas que não completaram o ensino fundamental, subindo para 77,8% no caso das mulheres com nível superior completo. A menor porcentagem de mulheres do público alvo de menor escolaridade que fazem mamografia é registrada na Região Norte (32,5%), e a região com a maior realização de mamografias entre o mesmo grupo é a Sudeste (58,3%).
A mamografia é essencial para o diagnóstico precoce
Mulheres brancas do público alvo são as que mais fazem mamografias (61,8%), seguidas de mulheres pretas (56.5%) e pardas (54,4%), de acordo com o relatório. Mulheres do público alvo que ganham até ¼ de um salário mínimo são as que menos fazem os exames (42,9%), enquanto mulheres do mesmo público que ganham mais de cinco salários mínimos são as que mais fazem os exames (83,7%). O instituto estima que homens representam 1% de todos os casos no Brasil.
Já nos Estados Unidos, apesar de representarem o segundo grupo mais diagnosticado com a doença, as mulheres negras são as que mais morrem de câncer, de acordo com o relatório da American Cancer Society. Especialistas do relatório acreditam que isso se dá porque as mulheres negras estão mais propensas a um tipo mais agressivo da doença, tendem a ser diagnosticadas mais tarde do que as outras e têm menos acesso a tratamentos de qualidade, exames de qualidade e planos de saúde de qualidade. As mulheres indígenas e hispânicas também são afetadas desproporcionalmente, de acordo com o relatório. Apesar de serem a terceira população com mais diagnósticos, as indígenas são a segunda população com a maior taxa de mortalidade. Já as hispânicas são o grupo com menos diagnósticos (em quinto lugar), mas com a quarta maior mortalidade.
Ao todo, a ordem de mais diagnósticos é de mulheres brancas, seguidas por negras, indígenas, asiáticas e hispânicas. Já a ordem do maior índice de mortalidade é de mulheres negras, seguidas por indígenas, brancas, hispânicas e asiáticas. O Centro de Controle e Prevenção de Doenças americano (CDC) estima que a incidência do câncer de mama entre homens nos Estados Unidos também seja de aproximadamente 1%.
Apesar de termos progredido na questão da conscientização e tecnologia de tratamentos, muito ainda precisa ser feito para combater o câncer de mama, especialmente quando se trata de desigualdades. Precisamos investir em programas eficientes e fortalecer a prevenção sem nos perder da onda rosa, que dá uma falsa sensação de alegria e celebração quando se trata de um assunto tão sério sobre uma doença que mata milhares de pessoas todos os anos ao redor do mundo. Como disse Nancy G. Brinker em um comunicado em seu site, “O Mês da Consciência sobre o Câncer de Mama não é só sobre usar lacinhos rosa ou se adornar com símbolos de suporte. É sobre educação, diagnóstico precoce e acesso a tratamento de qualidade. É sobre nutrir uma cultura de abertura e diálogo que acabe com o estigma e o medo associados com o câncer de mama. Quando aumentamos a conscientização, nós empoderamos indivíduos a tomarem controle de sua saúde, fazer avaliações médicas e engajar em discussões proativas com profissionais de saúde”.
*Nancy escreveu um livro sobre sua trajetória na luta contra o câncer de mama. O primeiro
capítulo está disponível gratuito em seu site
**Uma curiosidade: Em 2010, a Estée Lauder Companies, que neste ponto já tinha uma
campanha global estabelecida contra o câncer de mama, entrou no livro de recordes Guinness
World Records por iluminar a maior quantidade de monumentos ao redor do mundo em nome
de uma causa em 24 horas, de acordo com o site da marca
Viva Mulher 20 Anos: História e Memía do Controle dos Cânceres do Colo de Útero e de Mama no Brasil
Câncer de Mama, Câncer de Colo de Útero: Conhecimentos, Políticas e Práticas
