A Copa do Mundo e a Copa Feminina

A Copa do Mundo e a Copa Feminina

Copa do Mundo. Um título supostamente neutro, mas que é extremamente carregado de ideologia de gênero. Quando se fala de copa do mundo – aquela que para o Brasil une as pessoas, vende camisetas, álbuns de figurinhas, vuvuzelas, é motivo de festas, por exemplo – a referência é a copa dos homens.

Sem nome neutro, o torneio envolvendo seleções femininas de futebol foi batizado de a Copa do Mundo Feminina. Os homens são sempre a regra, as mulheres a exceção. (Sabia quem tem um álbum da copa das mulheres também?) Tem a copa e tem a outra copa, a copa das mulheres – um conceito já discutido pela filósofa francesa Simone de Beauvoir lá em 1949. E não é só na teoria, na fala, ou no imaginário das pessoas. Se você pesquisar “copa do mundo” no Google, a maioria dos links será sobre a copa masculina – no meu computador, aparece a tabela feminina de cara, mas logo abaixo a maioria dos links são sobre a copa dos homens. Até no Google imagens. Um reflexo da nossa sociedade machista, em que os homens são sempre o padrão.

Mas, na verdade, chamar a copa das mulheres de feminina não é totalmente um problema, como conta Caroline Criado Perez em seu livro Mulheres invisíveis: O viés dos dados em um mundo projetado para homens (uma leitura que mais que recomendo, aliás). Por serem tão invisíveis, o fato de colocar “mulher” ou “feminino(a)” ao lado de expressões na quais o homem é considerado a regra lembra a sociedade de que as mulheres também fazem parte do rolê, contou Perez, citando uma análise de 2012, do Fórum Econômico Mundial. Afinal, se a copa dos homens é a Copa do Mundo, como se lembrar das mulheres? Para avançarmos na igualdade de gênero, quando falamos das copas dos homens, deveríamos dizer “a Copa Masculina.”

Como uma mulher branca, poucas vezes senti o impacto da falta de representatividade. Mas não existem palavras o suficiente para descrever a sensação que tive ao entrar em uma loja da Nike, em Nova York, neste fim de semana, e me deparar com uma decoração focada na copa feminina. O primeiro andar estava tomado de camisetas das seleções do Brasil e dos Estados Unidos, fotos de jogadoras e manequins de mulheres vestidas com roupas de futebol – e olha que eu nem acompanho tanto, mas a sensação foi linda. Se eu já tinha a intenção de assistir as partidas, na hora fui correr atrás e pesquisar sobre a tabela dos jogos.

Mas, quando se trata de representatividade e disparidade de gênero, o caminho a percorrer ainda é longo. Recentemente, circulou pelas redes um vídeo em que Marta é apontada pela equipe da TV Bandeirantes como a estrela de um jogo, em 2010. De presente, a Bombril, identificada como uma das patrocinadoras do evento, deu à atleta uma cesta de produtos de limpeza. Em 2021, a jogadora paraguaia Dahiana Bogarín foi fotografada com um jogo de panelas da Tramontina que teria recebido como prêmio por ter se destacado em uma partida. As imagens foram muito criticadas, já que limpar e cozinhar, tarefas domésticas, são estereotipadas como trabalho de mulher (na prática, são as mulheres ao redor do mundo quem são as principais responsáveis por essas tarefas mesmo, conta Perez em seu livro).

Mesmo que a Bombril seja uma empresa de produtos de limpeza e a Tramontina uma fabricante de utensílios de cozinha (não teria muito como dar outro tipo de produto), os episódios indicam uma completa falta de sensibilidade dos gestores das marcas que, mesmo sem querer, estavam perpetuando estereótipos. Não basta dizer que é a favor da igualdade de gênero se, na prática, suas ações sobre o tema não são conscientes. Um troféu bonito – ou até um cheque – teriam sido mais alinhados ao objetivo de ampliar a visibilidade das mulheres do futebol.

E em 2023, a realidade continua desigual. Apesar de ser a maior artilheira da história das copas, Marta usa chuteira sem patrocínio por supostamente ter recusado propostas que ela não considerava financeiramente justas. Em suas chuteiras, exibe um protesto: o símbolo de igual (=) e as palavras Go equal (Seja igualitário), parte de uma linha que ela mesma criou.

Isso também acontece com o salário das jogadoras e o prêmio das campeãs da copa feminina. Enquanto as jogadoras de futebol mais bem pagas do mundo Megan Rapinoe e Alex Morgan ganharam US$7 milhões cada no último ano, Cristiano Ronaldo, Lionel Messi e Kylian Mbappé embolsaram pelo menos US$120 milhões cada, estimou a revista Forbes. Já o fundo de prêmios para o feminino equivale a US$110 milhões, um quarto do fundo de prêmios para o masculino, de acordo com a mesma publicação. 

E o problema não vem só em forma de remuneração, em uma coletiva de imprensa com a capitã e o técnico da seleção feminina do Marrocos, um jornalista da BBC perguntou se alguma jogadora do time era lésbica e como era a vida delas, dado que relacionamentos homossexuais são ilegais no Marrocos. Em resposta, o representante da FIFA, que mediava a coletiva, disse que a pergunta era muito política e que o foco da coletiva deveria ser sobre questões ligadas ao futebol.

Entendo que a pergunta pode ter sido bem-intencionada, mas, como as ações de Bombril e Tramontina, ela foi extremamente deselegante e até irresponsável. Isso porque, não só o repórter não considerou o risco à vida das jogadoras do time, como também reforçou o estereótipo que gostar de futebol é coisa de homem hétero, logo, mulheres que praticam o esporte só podem ser masculinizadas ou gostar de mulher. Muito além disso, esse questionamento reflete uma triste realidade nas entrevistas com mulheres – desde políticas, a atrizes, a jogadoras – que são sempre questionadas sobre relacionamentos, roupas e atitudes em vez de seu trabalho e sucesso profissional.

Mas pouco a pouco, vamos dando passos em direção a igualdade. A audiência do primeiro jogo da seleção brasileira feminina bateu recordes no Brasil. O número de parcerias da FIFA com marcas para a copa feminina também subiu – de 12, em 2019, para 30, este ano –, de acordo com um comunicado da FIFA. O que vem adiante depende de nós. Afinal, o futebol feminino só vai crescer se falarmos, apoiarmos, assistirmos e tratarmos as suas jogadoras como as atletas respeitáveis que são. 

 

 

Isabela Rocha

Autor: Isabela Rocha

Sobre o/a Autor(a) Isabela Rocha é jornalista freelancer. Apaixonada por escrita, comunicação e justiça social, seu sonho profissional é trabalhar para o avanço da igualdade de gênero e do combate ao racismo. Ela acredita no poder democrático das notícias e sempre busca contar histórias relacionadas à diversidade para normalizar a vida de minorias sociais.


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