Um GUETTO do tamanho do Brasil

Um GUETTO do tamanho do Brasil

“O ensinamento da favela foi muito bom para mim”. O verso da música Fórmula Mágica da Paz, celebrizada pelo grupo de rap Racionais MC´s, se repete com grande frequência ao longo dos cerca de 50 minutos de entrevista, via aplicativo de vídeo chamada, com Vítor Coff Del Rey, 36 anos.

E não se trata de um “cacoete verbal”, tampouco de uma “apropriação auditiva”. O hoje empreendedor social, consultor, pesquisador de temas da diversidade e presidente do Instituto GUETTO está contido em algumas das situações descritas nessa canção (quase um libelo), que narra as desventuras e as vitórias no dia a dia de muitos moradores da periferia. Se saber chegar e saber sair é uma arte valorizada em qualquer lugar, na favela e na Baixada Fluminense, é ainda mais.

E tem sido a partir dessa perspectiva que Vítor aponta sua lente para o mundo e interage com inúmeros interlocutores na academia, no mundo dos negócios e nos espaços de ativismo e de militância social. O passar dos anos e a adição de competências à biografia foram-lhe acrescentando sabedoria, mas não lhe tiraram o sentido de urgência quando o assunto é a luta pelos direitos sociais e econômicos da comunidade afro-brasileira. “Hoje, ainda uso falas duras”, diz. “Mas já entendi que não é metendo o pé na porta que se faz transformações sociais em um país que odeia preto”.

Vitor Del Rey Um guetto do tamanho do brasil 1 papo retoVitor Del Rey no dia da colação de grau, na FGV Essa, digamos, flexibilidade é fruto da maturidade ancorada em dois pilares. O primeiro deles é a longa experiência adquirida no mundo acadêmico (B.A. em Ciências Sociais na FGV-RJ, mestre em Administração Pública pela GV, aluno visitante no MIT, MBA em Finanças de Impacto pela Universidade Torcuato Di Tella) e do trabalho. O segundo, e não menos importante, é o nascimento de seu primeiro filho, Aaron, que acaba de completar oito meses. “A paternidade chegou em um momento no qual estava consolidando minha transição de militante para ativista”, conta. “Nessa função, tão importante quanto a retórica é a dialética e a capacidade de colocar os projetos de pé”.

A conversão do Vítor ativista da Educafro, entidade fundada pelo frei Davi, pioneira em projetos de inserção universitária de jovens de baixa renda, no Vítor empreendedor da Economia Criativa, consultor de programas de diversidade e um dos mais influentes pensadores de sua geração, foi um processo lento e, assim como na canção dos Racionais MC´s, resultante de inúmeros “ensinamentos da favela”. Um deles é a solidariedade quase cúmplice que somente quem é negro/negra consegue perceber e entender. Especialmente em alguns espaços de poder nos quais, até recentemente, muitos não eram admitidos nem para limpar o chão. “Minha primeira vitória não foi ingressar na FGV, mas, sim, o fato de não ter sucumbido diante das dificuldades estruturais, incluindo os reiterados casos de racismo e micro agressões diárias, em um ambiente onde você é visto quase como um intruso”.

Salvaram-lhe as redes de apoio e as parcerias com as meninas da limpeza e o chefe do setor de Manutenção Geral. As primeiras dividiam com ele parte do café privativo dos funcionários e alguns acepipes que sobravam dos eventos matutinos. Ronaldão, por sua vez, era quem bancava o almoço no bandejão (R$ 12,50), sempre que Vítor estava descapitalizado. Em comum, essas personagens tinham a “roupa humilde, a pele escura e o rosto abatido pela vida dura”, como descreve a música Fórmula Mágica da Paz. “Havia uma cumplicidade natural porque, assim como eles, eu vinha da periferia. Além disso, de certa maneira, estava realizando algum sonho que eles não haviam conseguido”, conta Vítor. 

Aqui, urge explicar o seguinte: apesar de ter estudado com bolsa integral, intermediada pela Educafro, Vítor teve que primeiro passar no concorridíssimo vestibular da FGV sem contar com qualquer vantagem. Segundo, para manter a bolsa, a nota tinha de ficar acima de sete. Terceiro, mas não menos desafiante, era preciso vencer o custo financeiro e o desgaste físico e mental de percorrer, diariamente, os cerca de 50 km que separam os bairros de Vila Nova, no município de Nova Iguaçu, onde morava, até Botafogo, na Zona Sul da cidade do Rio, onde está localizada a FGV. “Acordava às 4 horas da manhã e me equilibrava entre ônibus, metrô e trem para chegar à faculdade”.

As parcerias, os acordos não escritos e as coalizões não se limitaram ao pessoal do “chão de fábrica”. Aconteceram, também, alianças estratégicas com diversos integrantes da elite econômica e política que trafegam pelos corredores da vetusta instituição de ensino. “Nesses espaços, é vital que você entenda o jogo que está sendo jogado. E, a partir daí, saiba navegar de forma estratégica nesse cenário”. Esse moto acabou levando Vítor a ser contratado pela FGV Projetos. Mais uma vez, chegou lá por mérito. “Eu me coloquei como uma pessoa capaz de conectar a estrutura da FGV com um universo que eles não conheciam e ao qual tampouco tinham acesso”, lembra.

Vitor em familia 1 papo retoVítor em familiaFoi esse repertório privilegiado, fruto de uma observação atenta e apreensão dos “ensinamentos da favela”, que pavimentou as tacadas empreendedoras de Vítor e dos parceiros e parceiras que surgiram no caminho. A primeira delas foi o aplicativo Kilombu, lançado em fevereiro de 2016 com o objetivo de conectar empreendedores da comunidade afro-brasileira, moradores ou não de favelas e comunidades. Em 2019, foi a vez de transformar a Ponte para os Pretxs, comunidade de Facebook criada em 2016, em uma escola de desenvolvimento de talentos. Na sequência, veio o Instituto GUETTO, que começou a operar oficialmente em 20 de novembro de 2019.

O Instituto surgiu para ser uma espécie de guarda-chuva para as demais iniciativas, além de organizar a vertente de consultoria, atividade já prestada por Vítor e alguns dos cofundadores, todos com biografias invejáveis no mundo acadêmico e no mercado de trabalho. O GUETTO foi a resposta a uma dor que “atravessa” a trajetória de boa parte dos integrantes da comunidade afro-brasileira: como transformar o conhecimento em um ativo que gere recursos? Depois de “hackear o sistema” por dentro, Vítor se viu em uma situação dramática: “um dia, comecei a refletir como era possível eu estar cursando MBA na FGV e ainda depender de ajuda da minha mãe para pagar a passagem do ônibus”.

Foi nesse ponto que ficou evidenciado que a trajetória do militante necessitaria sofrer uma inflexão estratégica. Conversando com amigos mais velhos, que viveram o mesmo dilema, ele percebeu que estava “dando de graça” ativos que valiam ouro: sua rede de relacionamentos e sua capacidade de mobilização. “Passei a cobrar por palestras para entidades empresariais”, conta. E o tíquete é alto, similar ao de palestrantes e consultores com biografia semelhante. Nem por isso, diz ele, tem faltado convites para Vítor e os demais associados ao Instituto. “Hoje, minha mãe, dona Teresa, que me bancou durante a faculdade costurando capas para banco de automóveis até às três da manhã, não trabalha mais”.  

Como vemos, Vítor é uma usina de iniciativas e tem muito a dizer. Tanto que 1 Papo Reto decidiu convidá-lo para escrever uma coluna mensal. A partir da quinta-feira, 12 de agosto, ele vai dividir conosco um pouco de seu trabalho à frente do Instituto GUETTO e outras iniciativas, além de insights e pensatas sobre os temas da atualidade. Sempre com o ar crítico e provocador que se tornou sua marca registrada.

 

Bem-vindo ao universo 1 Papo Reto, querido Vítor.